27 setembro 2006

Desabafação

Meu avô morreu hoje. Seu Alfredo, o pai do meu pai, partiu hoje de manhã, aos 89 anos, 2 meses e 6 dias de vida. Vítima de câncer, que se agravou nos últimos meses e tornou o fim dele abreviado e dolorido.

Mas, acredito eu, e minha família, que a a principal causa mortis foi negligência. Negligência que começou há uns 10 anos atrás, quando eles (ele e minha avó, Dna. Alice, agora viúva, com 85 anos) saíram do plano de saúde onde estavam. Meu pai conseguiu negociar com a fundação de funcionários onde ele era filiado, como funcionário (hoje, como aposentado), sendo de Furnas, e colocar os dois como dependentes no plano dele. Plano caro, mas um dos melhores da praça (*). O geriatra que os atendeu, na época, verificou a hipertensão da minha avó, alta de colesterol, etc... Mas mesmo assim, eles resolveram sair do plano de saúde. A alegação foi: Pagar por quê, a gente não fica doente mesmo...

Aliás, meus avós são uma coleção de decepções. O que me tranquiliza, é saber que os meus pais serão avós muito melhores do que meus avós foram para mim, e o melhor: sem propaganda enganosa. Ouvir que eu vivo para vocês, e você saber que não é assim... É dose. Tá, não foram avós omissos, totalmente falhos, etc. Foram avós "normais". Não fizeram nada de extraordinário, nada o que um casal de avós normais não faria pelos netos. Nos encheram de brinquedos, mesmo quando a gente precisava de roupa.

Um médico me disse que um câncer leva em torno de 5 anos para se instalar. E eles saíram do plano cerca de 10 anos atrás... Daí pode-se pensar muitas coisas. Tirando as cirurgias para operar a catarata, nada de sério. Até que, no final de 2004, ele teve um AVC. O popular "derrame". Estranho, porque o velho Alfredo tinha um coração que era um relógio suíço, um colesterol bom, tudo bem. Acreditamos que havia depósito de placas na aorta carótida, e algo ocorreu, a placa se desprendeu... Pronto, mais um acidente vascular cerebral para as estatísticas médicas brasileiras. O AVC dele foi médio, mas ele se saiu bem: fisioterapia, fonoaudiologia, tratamento feito... E ele estava pronto para outra. Foi comprado cadeira de rodas, andador, foi acompanhado por médicos... Tudo ocorreu bem, e ele se recuperou quase que 100%. Foi uma surpresa para nós e para ele, pois ele agia como se fosse viver para sempre: "Nunca pensei que isso iria ocorrer comigo", ele confessou para a nora (minha mãe), recentemente.

Minha avó é uma barata tonta, metida a resolver tudo, mas não resolve nada. Logo, quem tomou as decisões a respeito do meu avô, nesse momento, foi meu pai (filho único, por mais que ele odeie essa situação - era sonho dele ter um irmão ou uma irmã) e a prima dele, que é médica e madrinha do meu irmão. Foi internado onde ele não tinha direito (Hospital dos Servidores do Estado), e lá ficou perto de um mês. Graças à sobrinha, médica. Mas depois, Dna. Alice narra tudo que foi feito, como se ela tivesse feito. Tsc tsc tsc... Alguns podem pensar: "Ah, mas ela é velha, dá um desconto...". Acontece que ela age desse jeito desde quando meus pais eram namorados, e já se vão mais de 35 anos. Naquela época, ela era uma recém-cinquentona. Minha mãe é mais velha hoje, do que ela era naquele tempo. Ou seja, o gênio difícil dela vem desde o princípio. E agora, com 85 anos, vocês podem imaginar.

Em meados de 2005, ele internou, para tirar um tumor da bexiga. Era do tamanho de uma azeitona. Nada foi feito, e a gente só soube que foi feito... Depois. Ela fez o favor de perder o resultado da biópsia, e nada foi feito. Em 2006, nova internação, para tirar um novo tumor, logo depois da Copa do Mundo. Mais um tumor, e a biópsia apontou: Câncer. Minha avó nem falava no nome, apenas se referia como "aquela doença". Ou seja, como se fosse sumir se não citasse a "podridão do corpo", não falasse o nome... O velho começou a urinar sangue, mas não se pode falar nem no nome do hospital que trata "daquela doença" (INCA), mesmo que um dos 4 hospitais da rede fica a 500m da casa deles... Viram, e o médico falou que pelo visto, não daria para fazer muita coisa: 89 anos, debilitado, não aguentaria a radioterapia, muito menos uma quimioterapia. O procedimento, no primeiro tumor, seria remover a bexiga e fazer uma nova com um pedaço do intestino grosso. Talvez, num plano de saúde, o médico tivesse feito isso, não apenas um paliativo.

Sexta passada foi internado no HSE, e estive lá no sábado, com meu pai. Tristeza... Saí de lá achando que aquela era a última vez que o veria. Meu irmão esteve na segunda, e escondeu o rosto para não chorar na frente dele. Meu irmão, o neto que eles simplesmente apagaram da memória... É triste, mas por causa da intolerância da minha avó, e da omissão completa do meu avô, 5 anos de convivência gostosa conosco foram perdidos.

Meu irmão casou-se em 2002, no mês de fevereiro, num sábado, dia 2. Todo mundo esteve presente... Menos eles. Por quê? Porque era longe, foi a desculpa que eles deram. Conseguimos carona para eles (um taxista, amigo nosso, pessoa ótima, motorista como poucos), tinha uma médica de prontidão (a prima do meu pai, sobrinha deles, que é especializada em pronto-socorro), corremos atrás de tudo, para que eles estivessem presentes no casamento de um dos únicos dois netos que eles tem. Preferiram ficar em casa, vendo novela e Zorra Total. Dispensável dizer que isso enfureceu a todos nós. Simplesmente não foram porque não quiseram. Isso esfriou a nossa afetividade por eles. O egoísmo deles, somado a frases como "Ah, vocês vão ter que engolir, eu sou assim mesmo e pronto!", vindo da minha avó, distanciaram eles da gente. E de lá para cá, esqueceram da existência do Fabio. Conto nos dedos de uma das mãos quando eles perguntaram por ele, queriam notícias dele. Nos dedos das duas mãos, conto quando perguntaram por mim. A gente era apenas "o pessoal" (minha mãe, meu irmão e eu), e mandava um abraço genérico. A convivência poderia ser bem melhor. Quantas vezes quis dar uma passadinha na casa deles, para tomar um lanche rápido e ver como eles estavam. Mas, isso demandava mover uma operação de guerra, e avisar com 48 horas de antecedência. Para tomar um copo de leite ("sem açúcar, vó..."), e recusar a eterna oferta de café ("vó, eu nunca bebi, eu nunca gostei!"), e para ter mais dores de cabeça do que alegria, eu declinei a visita, na maior parte das vezes. Aí, depois disso tudo, ouvir ela dizer que vive para a gente, e que ele era o melhor avô do mundo... Vai mentir no raio que a parta.

Meu avô era um velho bem-humorado. Meio surdo, teimoso... Não usava aparelho auditivo porque incomodava. Um bom piadista, adorava contar piadas de português. Logo ele, filho dos patrícios... Muito habilidoso com madeira, a mesa onde estão os meus MSX são obra dele. Viveu bem. Comeu muito bacalhau do Porto, bebeu muito vinho de qualidade, ganhou duas vezes na loteria... Mas não deixou patrimônio, além de um apartamento que ele ganhou do sogro, e a mobília. Eu quase diria que ele foi um bon-vivant, mas não tinha dinheiro para tal. Ainda guardo com carinho uma das últimas conversas que tive com ele, com o aparelho, e o papo foi tão divertido... Que eu não queria que acabasse. Eu ri muito, com as tiradas irônicas do seu Alfredo, e seu gosto por cinema. Não compartilhava dele o gosto por futebol. Eu, Botafogo, e ele, Vasco "saudável", já que segundo ele, doente é rubro-negro. E para piorar, no fundo, ele apoiava o Eurico Miranda.

Não adianta dizer que virou santo depois de morto. Os erros, os pecados, as falhas... Continuam as mesmas. Ele começou a morrer quando se fechou no mundo dele: Parou de caminhar com medo de ser assaltado (então não vai caminhar tão cedo, ora), parou de ir votar quando foi dispensado, ficou vendo TV, acompanhando tudo que é novela (argh), e colocou, ao longo da vida, a responsabilidade de pensar e decidir para a minha avó. Um morto-vivo, eu diria. E esse câncer veio encerrar uma existência de uma forma feia. Como se saísse da vida pela janela, meio que fugido... E não pela porta da frente, como deveria sê-lo.

Pena que o coração duro dele não deixou que Jesus entrasse. Segundo a fé da família (somos protestantes, como todos sabem), ele não morreu salvo, por mais que tivesse tido oportunidade de querer saber quem é esse Jesus Cristo, que o filho dele, a esposa e os netos tanto amam. Nunca quis saber, sempre se colocou como a maioria dos católicos brasileiros: Crê em Deus, mas vive como se ele não existisse.

Vá em paz, seu Alfredo. Vamos guardar na memória as brincadeiras, as partidas de badminton na quadra no quintal da casa dele, o primeiro contato com a informática (um Atari 2600, em 1983), os primeiros passeios de metrô (e eu deslumbrado, naquele trem que andava por baixo da terra), entre outras tantas coisas. E a perda da convivência no final da vida dele, a gente guarda com tristeza, pois foi uma opção dele, não nossa. Fazer o què, né? E como diz minha avó, achando que consola... É a vida.




(*) Semana passada, meu pai fez uma cirurgia razoavelmente simples, num bom hospital da Barra da Tijuca. Dois dias de internação, minha mãe como acompanhante... Infelizmente ele não pode dirigir, está impossibilidado por ordens médicas, pelo menos por enquanto. Soubemos recentemente que tudo o que ele passou custa em torno de R$ 9 mil. E o plano de saúde dele cobriu tudo.

PS: Eu estou bem. Um pouco triste, é claro, mas estou bem. Meu pai, que é o mais afetado, está tranqüilo. Chorou um pouco hoje, mas está conformado. Minha avó está bem nervosa (afinal, 64 anos de casamento), mas já sabia que o velho dela não iria sair dessa. O chato é ficar parado, em casa, esperando resolver essa situação. Pelo menos, vou escrevendo, e vou fazendo o que posso, da minha lista de coisas a fazer. É o jeito.

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